Por que é que não conseguimos olhar fixamente durante poucos segundos? É inegável que desconhecidos não se conseguem encarar. Alguma vez parámos para pensar como é difícil confrontar alguém que se cruza connosco na rua, alguém que está no mesmo café ou, simplesmente, alguém que vai sentado à nossa frente naquele trivial autocarro? O olhar, este acto simples e complexo ao mesmo tempo, que comporta tanta ciência. Os segundos de estatismo no olhar aumentam com os anos em que conhecemos a pessoa. Aos poucos e poucos vamos roubando tempo ao tempo. Esse que fomenta o conhecimento, esse que no ajuda a encontrar o suporte no olhar do próximo.
O quão perigoso poderá ser olhar de forma leviana para aquele ser que vai à nossa frente. Talvez fôssemos mal interpretados, pois das duas uma, ou queríamos algo íntimos com essa pessoa, ou seria um olhar puramente belicoso.
Oh mas sei que outrora não foi assim, antigamente olhava com despudor, com a despreocupação inocente de quem não teme o confronto, olhava daquela forma que talvez fosse a mais correcta e verdadeira, pois sabia que daí não resultaria nenhuma consequência negativa. Será que pode ser assim outra vez?
segunda-feira, 5 de maio de 2008
Olhar
terça-feira, 22 de abril de 2008
Lenço
Outrora longos, viu-os desaparecer, fio a fio, como se os contasse, olhava de forma lânguida aqueles finos e frágeis cabelos. Escorriam-lho pelos ombros e por fim caiam no chão, de forma suave e paulatina. Toda a sua vida mudara no instante em que soubera da notícia, queria desaparecer para não sofrer. No entanto, todos lhe deram força para continuar a lutar. Aquele lenço na cabeça era a sua marca, aprendeu a não se envergonhar da sua situação. Agora era uma mulher forte e determinada, com esperança de que tudo fosse passageiro e plenamente convicta que tudo tinha uma razão, nada acontecia por acaso. Talvez fosse uma prova, um castigo, ou uma partida do destino!
O tempo passou, o vento ficou mais sereno e, aos poucos, os seus cabelos cor de ouro começaram a crescer. Voltava a ser a mesma de sempre, o sorriso acendeu-se e tudo retomava o seu curso!
Lá em casa chamavam-lhe «lencinho» e, habitualmente, usavam o mesmo adorno em sinal de normalidade, não forçada, mas necessária. Era feliz e compreendida!
A sua filha era quem mais a apoiava, era alegre e vincadamente teimosa naquilo em que acreditava. Todavia, estes últimos meses tinham ido muito abaixo. Pese embora o facto de sua mãe estar completamente recuperada, tinha perdido as forças e o ânimo. Algo não ia bem, sentia-se desesperada, mas não mostrava. Sem saber bem porquê o azar tinha chegado à sua porta. E agora vejo-a, a caminhar neste corredor, com passos suaves! Entra no quarto, baixa-se custosamente e retira-o da gaveta. O lenço vermelho ia ter a mesma utilidade!
terça-feira, 1 de abril de 2008
Brinquedo
Oh aquele brinquedo que o fazia viajar, querer chegar lá! Que grande e belo, estupendo de faces rectas e traços vincados. Virava, girava, esticava, metamorfoses forçadas pelas mãos da criança que grita, chora e vive!
Oh esse brinquedo que lhe transformava o coração, esse "brinquedo de corda", transfigurado em algo irreal. Sentia a cabeça a voar, os segundos a esvanecerem pelos dedos sujos da terra, o cheiro a terra molhadas, e o verde cintilante da relva acabada de plantar. Era o ciclo da vida, na sua potência máxima. E a criança brincava, feliz e descomprometida, naquele seu jeito tão próprio.
Com aquele brinquedo, apenas aquele, conseguia colocar o seu pensamento noutro local, um rodopio em catadupa frenética. Em torno dele podia partir e chegar àquela estação do sonho, onde se conheceram e despediram. Lembras-te? Oh o sonho cresce, enche o espírito de vontade. E não digas que é estupidez querer o imaginário.
Com o brinquedo viajava, sim, ia àquele sítio e voltava, gostava de fazer amigos. Eram momentos solitários, mas repletos de momentos intensos.
Aninhava-se baixinho, sorria intensamente, fechava os olhos vincadamente, apertava o brinquedo contra o peito e partia. Que ritual tão simples e singelo!
Aquele simples brinquedo era assim, consumia-lhe as forças, mas dava-lhe vida. Através dele conseguia personificar-se, através dele era feliz. E não é ridículo por ser utópico. Ridículo é não sonhar, ridículo é não viver.
Ai, o meu brinquedo!
quarta-feira, 19 de março de 2008
Brincos Pirosos
Simples combinação do acaso, ou um acesso de pirosada num ímpeto de revolta contra os estereótipos sociais?
A complementar, um cabelo com as famosas nuances, uma camisola decotada e uma banhinha bem jeitosa, que denuncia aquele bolo apetitoso que vinha a comer repetidamente durante os últimos dias.
Andava majestosamente, com uma segurança singular. Os risinhos e comentários passavam completamente ao lado daquela personagem ridícula e pouco original.
Mas que se passa? Será que os espelhos se apagaram para essa criatura? Será que tem uma deturpação visual, qual catarata, qual quê!
E ela só queria ser feliz, ao jeito peculiar dela, mas inteiramente lícito nessa ânsia apressado, nesse desejo insatisfeito, nessa catadupa de sentimentos!
Cátia Vanessa, para sempre nas nossas memórias ficará esse garbo que te tornou mulher, essa imagem que tornou uma Ana Malhoa sensual.
Vai querida, brilha e torna-te estrela.
Atenção: devaneio causado por um raio certeiro ao centro da retina. Sempre que sintomas semelhantes persistam, consultem o vosso veterinário ou farmacêutico.
terça-feira, 4 de março de 2008
Razão
Estava escuro, o frio trespassava a pele e, perfurando como um punhal aguçado, lembrou-lhe que algo iria mudar. Era talvez uma noite diferente, ou então mais uma, sozinha, morosa e inabalável. Talvez seria o delírio, ou então a mais pura realidade. Nada saberia em concreto, a não ser querer que o tempo passasse. Tudo se resumia àquele momento, àquele minuto. E, dando voltas às cabeça, num roda vida de emoções, cogitações e sensações nunca dantes pensadas. Pensadas sim, embora desejadas como sentidas e vividas. Racionalidade crua e dura, numa analogia ao puro sofismo categórico, que nos massacra e corrói. Rodopia vida, rodopia. Dá a volta, vira página! E o vento volta, depois de terminado minutos antes. O cabelo esvoaça, o casaco é fechado, as emoções mudam e a expressão neutraliza-se. A corrida torna-se eminente, os passos alargam-se e o destino aproxima-se. A meta está mais próxima. Mas qual será o prémio? O mundo gira nos seus olhos, é a ilusão. Apetece-lhe cair e dormir, não consegue. Está em êxtase! Quer saltar, pular, sentir o chão. E no balanço dos episódios, a encarar o vilão, eis que os olhos se fecham e se cala a razão! E só aí tudo se esvanece, afinal não estava escuro, afinal não era vento, tudo era mito e nada era real. É aí que um raio quente obriga uma das janelas da alma a abrir-se, mostrando que mais alto o sol brilha e a solidão se mantinha. A vida exânime estava lá e por mais forte, duro e independente que fosse, tudo que mais ambicionava era... ajuda!
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
Sorriso
Paulatinamente, invadiram-lhe a mente os últimos dias. Os problemas com o marido, a discussão com a mãe, o despedimento, o acidente do filho... e que mais lhe restava naquele momento? A solidão, um refúgio sempre oportuno e fácil. Respira bem fundo, uma lufada violenta de ar preenche-lhe a alma. Sente-se cheia agora! Era como um carregar de bateria, gostava de se sentir pura, renovada com a Natureza envolvente. Despe-se! Primeiro com passos lentos e pesados, gradualmente céleres e graciosos, lança-se no mar. Passaram-lhe longos minutos e, por fim, regressa à areia quente por aquele sol outonal. As folhas, finalmente amarelas, esvoaçavam pelo ar, numa levitação mágica e quase irreal. O mundo é tão perfeito, cheio de pormenores interessantes. Era mote para ela recomeçar. Encontrar um sentido convincente e realmente preponderante. Volta as costas ao mar e parte, não sabia bem para onde, mas sabia que para um lugar melhor. Abana levemente a cabeça e sorri, era de facto uma dádiva viver!